The Wire S1

“The King stay the King”

Baltimore, Maryland. Uma cidade como tantas outras na costa leste dos Estados Unidos, Baltimore luta há anos contra o flagelo da violência, dos homicídios, da droga e da corrupção. Nesta cidade onde o crime compensa, o que começa como uma simples investigação sobre os barões da droga locais irá tornar-se numa viagem pelo submundo das grandes metrópoles, um verdadeiro documentário sobre os problemas que a sociedade moderna tenta esconder.

Contar uma boa história nem sempre é fácil: criar uma trama interessante, recheá-la de personagens marcantes, incluir reviravoltas surpreendentes que prendam o leitor até ao final coerente. Contar uma boa história implica uma grande imaginação, muita deliberação e um sentido crítico apurado para saber o que resulta ou não. Talvez por isso, e por muitas dezenas de livros que se leiam por ano, raras são aquelas histórias que sobressaem e que nos conseguem cativar. O mesmo acontece com a televisão, um meio onde se trabalha de forma mais rápida, onde a estética se sobrepõe, geralmente, à história que se pretende contar, onde se tem de lidar com um potencial público que não tem paciência para tramas intrincadas e que não quer ser obrigado a regressar, semana após semana, aos mesmos eventos. Mas por vezes, quando os astros se alinham e se deixa o autor à solta com a sua obra, conseguem-se criar algumas das melhores histórias de sempre. E foi isso que David Simon e Ed Burns tentaram fazer com “The Wire”.

Determinado a acabar com o clã Barksdale, rei e senhor do tráfico de droga em West Baltimore, o detective do Departamento de Homicídios Jimmy McNulty (Dominic West) consegue que seja criada uma pequena equipa de investigação dedicada a perseguir os traficantes da cidade. Liderada pelo tenente Cedric Daniels (Lance Reddick) do Departamento de Narcóticos, um homem com um passado obscuro e firme defensor da cadeia de comando, e contando com a ajuda dos detectives Greggs (Sonja Sohn), Herc (Domenick Lombardozzi) e Carver (Seth Gillian), a equipa irá lançar uma investigação profunda ao bando de Barksdale, mas vê-se limitada por interesses escondidos da parte dos dirigentes políticos e policiais da cidade.

Ao contrário de muitas outras séries policiais, “The Wire” não apresenta casos soltos, investigados em 40 e poucos minutos, nem grandes cenas de acção, que nos deixam prontos a saltar da cadeira, e muito menos maravilhas tecnológicas que ajudam a deslindar um caso em poucos segundos. O que descobrimos aqui é uma história continua, uma única investigação que irá ser a trama principal durante os treze episódios da primeira temporada e cujas repercussões se farão sentir até ao final; cenas de acção pura são raras, trocadas por momentos de reflexão, e quando as novas tecnologias marcam presença, ficam-se pelo substituir das máquinas de escrever pelos simples computadores. Tudo isto poderia ser prejudicial à série, mas acaba por ser aquilo que a permite distinguir-se das outras, destacar-se num terreno desbravado por grandes séries como “Homicide: Life On The Street” e “The Shield”.

Com uma estrutura muito própria, não é fácil entrar na história desta série, sendo necessários vários episódios para conseguir distinguir as (muitas) personagens, saber a que campo pertencem e quais os seus objectivos. O foco vai alternando entre as várias personagens, deixando-nos descobri-las lentamente: é assim que vemos um apagado Lester Freamon (Clarke Peters) revelar-se um dos mais inteligentes e impressionantes detectives do grupo, e que Roland “Prez” Pryzbzlewsky (Jim True-Frost) consegue deixar para trás os erros do passado. Por outro lado, ao apresentar a história também do ponto de vista dos traficantes, acrescenta-se uma intensidade diferente à história, provando mais uma vez que a antiga distinção entre bons e maus, heróis e vilões, está completamente ultrapassada. Se McNulty e Daniels são os líderes da investigação, o calculista Russel “Stringer” Bell (Idris Elba) e o chefe máximo Avon Barksdale (Wood Harris) são os grandes destaques do lado dos traficantes, dois homens que irão guiar grande parte desta história e que, graças à sua inteligência, irão provar ser inimigos à altura de qualquer equipa mais empenhada. E, no meio destes “heróis” e “vilões”, o que dizer de Omar Little (Michael K. Williams), provavelmente a melhor personagem de toda a série, o Robin Hood que rouba aos traficantes para dividir entre si e os mais pobres da comunidade, o ladrão que aterroriza as ruas ao som de músicas de embalar mas que segue um código de conduta muito próprio?

O facto de muitos eventos ocorrerem fora de cena torna-se outro obstáculo à recepção inicial desta história, obrigando a prestar muita atenção a tudo o que se passa, a guardar na memória conversas, eventos e nomes que, mais tarde (muito mais tarde), poderão vir a ser determinantes para a história. Mas se estas características muito próprias da série tornam a entrada neste universo mais complicada, acabam por revelar-se uma mais valia e surpreender aqueles que não desistem após os primeiros episódios. “The Buys” é, provavelmente, o episódio que marca essa diferença e que nos permite entrar verdadeiramente na história, identificar os “inimigos” graças a uma muito interessante alegoria naquela que é, provavelmente, a melhor cena de sempre desta série.

Porque “The Wire” se posiciona entre o documentário e a alegoria, entre o mostrar da realidade e o explorar daquilo que por detrás desta se esconde, a investigação policial revela-se apenas uma peça deste xadrez, mais uma trama entre outras que ganham tanto ou mais destaque. Esta é uma série sobre o tráfico, sobre os gangues e a sua violência que não poupa ninguém, nem mesmo os mais inocentes, que se vêem obrigados a entrar no jogo e que dele não conseguem sair como é o caso de  Bodie (J.D. Williams) e Wallace (Michael B. Jordan), representante máximo deste drama e figura essencial do momento mais marcante da primeira temporada em “Cleaning Up”. É também uma série sobre o questionar da autoridade, da importância que cada um tem no Jogo, seja ele o da criminalidade ou o da vida, tal como o faz D’Angelo (Larry Gillard Jr.), figura trágica que se encontra dividida entre a família e a consciência. Esta é uma série sobre a droga e as suas consequências devastadoras, personificadas magistralmente na personagem de Bubbles (Andre Royo), o toxicodependente e informador da polícia que representa o lado mais real da luta contra as drogas. Esta é uma reflexão sobre a fé que depositamos nas instituições que, no fundo, são altamente corruptíveis e que se defendem a si próprias, em vez de defender o indivíduo, como vemos em personagens como Rawls (John Doman), Burrell (Frankie Faison) e Clay Davis (Isiah Whitlock Jr.). Esta série é, afinal, um espelho da realidade que muitos se recusam a aceitar.

“The Game is out there, and it’s either play or get played.” Uma história complexa e interessante que nos obriga a reflectir, com uma imagem soberba, recheada de brilhantes interpretações, diálogos irrepreensíveis e cenas memoráveis, vale a pena dedicar várias horas da nossa vida a ver “The Wire”, mesmo que, por vezes, nos custe a aceitar a realidade nesta expressa. Mas quando a história é boa, vale tudo… nem que seja para descobrir Omar, Bubbles e “the Bunk” (Wendell Pierce).